O cantor e compositor João Bosco aproveitou o show comemorativo dos seus 50 anos de carreira realizado no domingo (28) à noite em Belo Horizonte, não só para cantar suas músicas e encantar o público, mas também para protestar contra o racismo. “Racismo, não!”, disse dirigindo-se a uma plateia emocionada que lotou o Palácio das Artes e o ovacionou a cada momento em que ia apresentando toda a sua genialidade musical, expressada nos seus inúmeros sucessos, através do seu canto único e dos sons originais e marcantes que consegue extrair do seu violão.
Antes de emocionar ainda mais o público com a canção “Sinhá”, de autoria dele e de Chico Buarque, Bosco contou que o parceiro havia se apresentado na véspera (27), na cidade do Porto (Portugal), quando homenageou o jogador brasileiro do Real Madrid Vini Jr, alvo de racismo na Espanha, com a mesma música. E que ele, naquele momento, faria o mesmo, dedicando a Vini essa afro-canção tão maravilhosa quanto triste, que tem como tema a escravidão, que tanto tem envergonhado o Brasil e a sua história.
Para quem ainda não teve oportunidade de ouvi-la, Sinhá apresenta uma letra magistral, sobreposta a uma melodia potente e melancólica. Ela conta a história de um negro escravizado, acusado injustamente de ter visto sua Sinhá se banhar no açude. O escravo tenta convencer, inutilmente, o seu algoz de que não deveria ser punido. Ele jura inocência ao senhor de engenho ao mesmo tempo em que antevê os cruéis e injustos castigos que fatalmente o aguardam: ser levado ao tronco, ter seu corpo cortado e ter os olhos furados.
João Bosco mostrou mais uma vez mostrou o quão genial ele tem sido ao longo desse meio século de intensa produção musical, um artista gigante, coerente e politicamente antenado. Para deleite das quase 1,7 mil pessoas presentes no teatro, ele mandou ver a canção “protesto”, através da qual expressou toda a sua indignação contra o preconceito, o racismo, a incompreensão e a maldade humana:
“Sinhá”
“Se a dona se banhou
Eu não estava lá
Por Deus, nosso Senhor
Eu não olhei, Sinhá
Estava lá na roça
Sou de olhar ninguém
Não tenho mais cobiça
Nem enxergo bem
Pra quê me por no tronco
Pra quê me aleijar
Eu juro a vosmecer
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da Santa Cruz
Eu só cheguei no açude
Atrás da sabiá
Olhava o arvorero
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na amoenda
Estava para Xerém
Por que talhar meu corpo
Eu não olhei Sinhá
Pra quê que vosmecer
Meus olhos vai furar
Eu choro em iorubá
Mas oro por Jesus
Pra quê que vassumcê
Me tira a luz
E assim vai se encerrar
O canto de um cantor
Um voz no pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou
Sinhá”
(João Bosco e Chico Buarque)